O presente do Carnaval da Terceira

Não consigo deixar de ficar emocionado quando ouço e vejo as primeiras danças e bailinhos de Carnaval a cada ano. Fico infinitamente maravilhado com a circunstância: homens e mulheres do dia-a-dia que, durante noites a fio, preparam músicas e representações teatrais sobre as mais variadas temáticas, para exibi-las a troco de alegria, boa disposição e pura tradição.

Os festejos carnavalescos remontam à época medieval. Esta celebração, que tem lugar entre o bom tempo da primavera e a escuridão do inverno, pretendia expulsar os demónios que o homem foi criando e acumulando durante o frio invernoso. Era necessário, a toque de música, exaltação e festa rija, expelir as trevas e preparar as comunidades para as colheitas e abundâncias da primavera.

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Desde os desfiles brasileiros ao som do samba até aos caretos de trás-os-montes,  o Carnaval é celebrado em inúmeras comunidades ao longo do planeta, com maior ou menor exuberância, sentido religioso ou festivo.

Esta manifestação cultural também tem lugar no arquipélago dos Açores, com principal destaque para a Terceira. Apesar de acontecer nos limitados quatrocentos quilómetros quadrados da ínsula, é largamente reconhecido como a maior manifestação de teatro popular de língua portuguesa em todo o mundo. O impacto do Carnaval na comunidade é tão alargado que o Governo Regional permite a realização de tolerâncias de ponto enaltecendo “a participação voluntariosa de milhares de cidadãos nas suas mais variadas vertentes: dramatúrgica, performativa, musical e logística”.

“(…) é um fenómeno cultural com um conjunto de características que o torna único. É um fenómeno que, uma vez por ano, durante quatro dias e quatro noites, transforma a nossa ilha numa plateia de trinta e cinco ou quarenta mil pessoas que naqueles dias comem e dormem à pressa para poderem assistir ao maior número possível de danças e bailinhos.”
por Hélio Costa

A alegria e amizade cozinhada e manifestada no carnaval terceirense atrai sucessivamente a participação de muitas pessoas. Popularmente reconhecido como o “bichinho”, o carnaval agarra emotivamente todos os seus participantes e admiradores.

No trabalho preparado pelos vários grupos, contam-se histórias do dia-a-dia saturadas de crítica social. O Carnaval terceirense, mais do que uma oportunidade, é um manifestação clara da opinião pública sobre os mais variados assuntos: política, sociedade, desporto, saúde, educação, etc. Tudo isto, cuidadosamente tecido em rimas e personagens tão bem trabalhadas quanto a experiência e o “jeito” (i.e. talento) permitir.

“(…) o Carnaval da Terceira é uma Mesa posta a toda a gente, incluindo quem nos visita. Onde todos podem saborear de forma gratuita, muita Harmonia, Amizade, Alegria, Criatividade, Música, Poesia e Fulgores. O Carnaval da Ilha Terceira é um Vulcão Cultural como no Mundo não há igual.”
por Hélio Costa

José Nelson Coderniz, numa crónica divulgada em fevereiro no Diário Insular, descreve de forma inteligentemente prática e sucinta o surgimento desde género teatral.

Foi a burguesia italiana do séc. XVII que começou por construir os primeiros teatros públicos. Com o objetivo de ter acesso à ópera (género que antes estava exclusivamente disponível para a nobreza), esta camada social apresentava temas sobretudo de teor mitológico que gradualmente, até ao séc. XIX, foram substituídos por temas do quotidiano. Este tipo de teatro era exibido em quatro momentos do ano, alcançando o seu expoente máximo no Carnaval (época em que as pessoas tinham maior propensão para o convívio noturno em lugares quentes e iluminados).

“Segundo uma perspetiva inglesa, podemos caracterizar os géneros artísticos, do Carnaval terceirense, quase como semi-óperas.”
Por José Nelson Coderniz

Na Terceira, e até aos anos 70 de novecentos, existiam apenas as Danças de Pandeiro (também conhecidas pelas Danças da Noite) e a Dança de Espada (ou Danças de Dia). A partir de 1980, os espaços de exibição sofreram alterações e os conceitos tratados nas danças alteraram-se.

“A Dança de Pandeiro definia-se, essencialmente, pela existência de duas alas de dançarinos, com cerca de 6 elementos por ala, uma composta por músicos e a outra pelos atores, sendo a figura central, o mestre, que além de cantar, devia usar mestria no manuseio do pandeiro. (…) Existia também, uma personagem típica, o ratão, que tinha a função de contraponto jocoso no contexto teatral. Por regra, este género performativo, cómico, só atuava de noite (…) em casas ou espaços particulares, normalmente dos participantes, e só assistia quem fosse convidado.”
Por José Nelson Coderniz

“A Dança de Espada caracterizava-se pela temática dramática, com assuntos históricos/religiosos que foram sendo gradualmente trocados por outros associados ao quotidiano. Composta por duas alas de dançarinos, a ação era dirigida por um mestre munido de uma espada. Atuava de dia, (…) tinha como espaços de atuação os terreiros e as zonas em frente às casas dos principais intervenientes.”
Por José Nelson Coderniz

Dadas as limitações de locomoção da época, os grupos apenas exibiam as suas peças na sua freguesias e nas vizinhas. Normalmente, só participavam homens e era comum estes vestirem-se de mulher para interpretar algum papel.

Com a construção de salões (i.e. pequenos teatros) pelas freguesias (e consequente melhoria das condições de visualização e audição), assim como o avanço nos meios de transportes, os grupos deixaram os pátios e ruas e começaram a atuar por toda a ilha.

Sendo uma manifestação totalmente organizada pelo povo e um organismo vivo que retrata a sua identidade, o Carnaval têm sofrido alterações mais ou menos naturais ao longo dos últimos 35 aos.

“Com a emancipação da mulher no Carnaval terceirense; a criação de escolas de ensino de guitarra/acordeão/bandolim e uma vontade generalizada dos músicos das bandas filarmónicas em participar no Carnaval,o número de grupos aumentou, havendo ainda uma transposição dos parâmetros que definiam tais géneros: o número de músicos ultrapassou os antigos cânones, obrigando a deslocação dos atores para fora das alas e surgiu outro género cómico, o Bailinho.”
Por José Nelson Coderniz

Contudo, nos últimos anos, e numa prespetiva pessoal, apesar do número de danças e bailinhos terem aumentado, o mesmo não tem acontecido com a qualidade. Cada vez mais, a vontade de participar na manifestação se sobrepõe à qualidade performativa. Tem havido uma tendência para a perda da rima e da história consistente. Aparentemente, os grupos têm-se protegido da falta de talento na concepção de histórias e músicas, recorrendo às “piadas da internet” e “arranjos do grupo” (baseados na adaptação de canções existentes). Não deixo de ficar frustrado, quando vejo que uma dança distorce o rumo da sua narrativa apenas para “colar à força” uma anedota com graça, mas descontextualizada. Tenho pena que muitos grupos estejam a seguir este rumo pois, no mínimo, retrata falta de genuinidade. Será que este é o preço do progresso?