A insignificância da linha costeira para os açorianos

Numa das minhas leituras aleatórias, li um pequeno artigo sobre um estudo realizado à gestão da linha costeira das ilhas açorianas. Neste documento, falava-se da forma como os ilhéus tinham usufruído das estruturas geológicas para criar zonas balneares, umas vezes utilizando-as tal como elas são e outras modificando-as para torná-las mais cómodas. O texto desencadeou em mim uma reflexão sobre a forma com que o açoriano vê o limite entre a terra e o mar.

Durante os meus estudo no continente, muitas pessoas perguntavam-me como é que eu conseguia viver num espaço tão circunscrito. A questão parecia afligi-las, como se imaginassem a ilha enquanto prisão de quatro paredes por onde não se consegue escapar. A minha resposta baseava-se simplesmente em descrever dois pontos distintos: por um lado, expor a naturalidade com que o ilhéu olha para a linha costeira, i.e. trata-se apenas da faixa onde o mar e a terra se misturam; e, por outra, da forma aberta com que o açoriano acolhe a vastidão do mar.

A percepção do limite, enquanto ilhéu, é muito clara e presente. O limite é a linha que o mar desenha na terra. No entanto, não é barreira, o mar é continuidade e não motivo de exílio, é o espaço onde o ilhéu mensura a sua própria concepção de infinito, onde desenha o seu caminho de evasão.

Por Filipa Bettencourt Picanço

Nunca senti que o mar fosse um monstro claustrofóbico e inibidor de ver mundo. Pelo contrário, sempre senti que o mar fosse libertador. Enquanto que uns vêem o oceano como o limite do alcançável, os açorianos vêem-no como a certeza de que conhecem tudo o que existe, que não há mais nada a observar ou conquistar. Assim, o mar é o expoente máximo do que há para conhecer: nele tudo começa e acaba.

O mar é uma referência geográfica, olhá-lo é saber onde se está. Da mesma forma que o pastor usa os montes para se guiar pelos campos, os açorianos usam o mar e a linha costeira para vaguear pelas ilhas (de forma física ou espiritual). Assim, é expectável que alguns açorianos se sintam desnorteados e encurralados quando estão nas grandes cidades, onde os prédios os sufocam, inibindo-os de ver o mar. Nesta perspectiva, o oceano, por estar libertado e ser libertador, é também entendido como uma enorme fonte de inspiração. A arte no açoriano surge em pleno mar deserto: é na [falsa] percepção de se conhecer tudo o que a visão alcança que a criação decorre. Provavelmente, é este mesmo facto que leva à originalidade e excepcionalidade da cultura açoriana, criando-se um paradoxo: o que inibe é simultaneamente o que liberta.

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A naturalidade com que o açoriano vê a linha costeira torna-a insignificante. Não importa se é uma calheta, uma angra ou uma falésia: o açoriano vê a costa como uma porta para o mar, numa relação de respeito e profunda ternura como aquela que se tem com um amigo de longa data.

Esta é, a vez primeira. A vez primeira: que neste auditório canto.

Nasci numa ilha em pleno oceano atlântico que, com outras oito, forma o arquipélago dos Açores. Todos os dias, há diferentes tons de azul e verde que me enchem os olhos. Apenas o basalto negro permanece igual, lembrando a origem vulcânica destas ínsulas.

Tendo em conta que estão distribuídas ao longo de 600km, designá-las num todo como arquipélago é relativamente recente.

Então, o que há de interesse num local tão remoto? Esta é a questão de partida. Seria mais correto definir cada ilha como um arquipélago per si, do que num conjunto. Nos Açores, cada ilha é um arquipélago.

A posição do conjunto insular no atlântico tornou-se fundamental nos trajectos marítimos dos séculos XV a XVIII, permitindo o interesse e fixação de gentes. As condições atmosféricas e solo rico levaram ao desenvolvimento de indústrias agrícolas e pecuárias produtivas. Contudo, estas ilhas não se deixam domar facilmente e lembram constantemente que são filhos da natureza: erupções vulcânicas, terramotos e tempestades são as mais temíveis demonstrações da soberania destas ilhas.

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Todos estes factores influenciaram as gentes que se fixaram e prosperaram nestas terras de basalto negro, desenvolvendo assim uma identidade açoriana, fruto do isolamento e circunstância insular.

O tempo e o isolamento poderiam ser os causadores da sua morte, mas são estes que [também] mantêm a identidade que ainda hoje se manifesta de forma intensa através de oralidades, tradições e vivências.

Basalto Salgado é um blogue que materializa reflexões sobre a insularidade açoriana: o seu imaginário, identidade e vivência. Estes pensamentos, mais ou menos profundos, não se preocupam com atributos científicos porque são fruto de uma figura simultaneamente passiva e ativa que observa, toca, prova, ouve e sente a insularidade açoriana.

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