«A última palavra é do mar!»

Era quarta-feira e a proximidade do sol ao horizonte reclamava o que restava daquele dia. O desacelerar do quotidiano já se fazia sentir mas as responsabilidades ainda tinham de ser cumpridas. Em busca de um lanche apressado, fomos ao terminal de Multibanco levantar dinheiro. Lá, na moldura de chapa suja, estava um autocolante suficientemente grande para chamar à atenção da minha namorada, mas tão pequeno que o meu olhar desatento não reparou. O pedaço de papel anunciava uma peça de teatro que seria exibida no sábado seguinte. Curiosa, a minha companheira foi saber mais sobre o assunto e descobriu um texto com mais detalhes, que nos incentivaram a não perder o acontecimento.

No sábado fazia junho e a humidade açoriana criara um final de tarde agradável. Num compasso de espera acompanhado por uma conversa animada, uma cerveja e uma bebida citrina, fazíamos tempo para a peça que iria começar às 22:00 horas, na Casa do Sal. À porta, pagámos quatro euros por cada bilhete, esperámos mais um pouco e subimos as escadas. Connosco estavam outras 15 pessoas, no máximo. O piso superior era pequeno e a iluminação improvisada denunciava um teatro alternativo e íntimo. À frente das cadeiras com alguns lugares vazios (talvez das pessoas que recorreram a outros terminais de Multibanco) estavam Hélder Xavier e Ricardo Ávila, prontos para interpretar «Os amores encardido de Padi e Balbina: uma dúbia estória do revenge», encenada por Ana Brum.

Já tínhamos assistido à peça no Núcleo de História Militar Manuel Coelho Baptista de Lima, mas toda a magia daquela pequena sala da Casa do Sal, fazia com que sentíssemos que estávamos a assistir à peça pela primeira vez.

Entre música, choros, gritos, risos e surpresas, o teatro de verdade refletia-se numa história que misturava ingleses, espanhóis, a ilha das Flores e umas caixas misteriosas. Foi, provavelmente, a melhor peça teatral deste ano em Angra do Heroísmo.

Sem efeitos luminosos, sem palco, sem vestes caras, sem merdas. O teatro fez-se à frente de uma parede branca, com as janelas abertas e voltadas para o único figurante da peça: o mar.

... by Rui Caria on 500px.com

Segunda à sexta, em Angra.

O relógio da igreja da Sé desperta a sonolência dos angrenses que, pelas oito e meia da manhã, já voam pelas ruas da cidade a pé, de carro ou nos minibuses em direção aos seus trabalhos. Num passo menos acelerado, vagueiam algumas velhas arrematadas que já se despacharam dos seus compromissos e agora fazem tempo para apanhar a próxima carreira. A esta hora, quem está parado na rua só pode ser louco.

Detail through Puddle by Tiago Ormonde on 500px.com

Angra está a todo o gás às dez horas. O empregado de balcão já serviu nove cafés. A comerciante já atendeu oito clientes. O fiscal dos parquímetros já passou sete multas. O desempregado já deixou o currículo em seis empresas. O estafeta já entregou cinco encomendas. O contabilista já tratou das contas de quatro clientes. O médico já atendeu três pacientes. O reformado já deu dois dedos de conversas. O estudante já se baldou a uma aula.

O meio-dia anuncia a maratona dos funcionários públicos, não porque é hora de almoço mas por que precisam dar umas voltas. Desde ir à farmácia até ver o que há de novo nas lojas de roupa, os 60 minutos dividem-se entre saborear o papo-seco e aguardar na fila de atendimento das Finanças.

O martelo pneumático escondido atrás de uma casa em obras, o taxista mal humorado a apitar e uma ambulância em emergência, são a santíssima trindade das 15 horas na cidade. O júbilo do dia acontece com a chuva ou com o sol que decidiram aparecer.

Duas horas depois terminam as aulas e existem tantos putos a atravessar as ruas quanto adultos no dia inteiro. Entre pais e avós mal estacionados, há quem precise de circular por Angra por questões de trabalho.

Às sete da tarde, só se vêm turistas equipados com meias brancas e camisas arregaladas, divididos entre uma selfie com o Vasco da Gama e um olhar atento ao preço dos pratos apresentados à porta dos restaurantes.

Ao final da noite, não se vê nada nem ninguém na rua. A réstia de vida angrense esconde-se nos cafés, no cinema ou numa palestra sobre qualquer coisa, num qualquer lugar.

Depois a humidade traz frio e Angra adormece. Até amanhã, boa noite.

Vento by Luís Godinho on 500px.com